Cesar Augusto Cavazzola Junior
A harmonia é um prazer aos sentidos. Sobre a pele, o veludo ou a faca de corte? No paladar, o saboroso ou o insosso? Ao olhar, a beleza ou a frieza? Ao espírito, o angelical ou o infernal?
Por que não pensar os símbolos das operações aritméticas sem o peso que a muitos traumatiza? Pois assim seria: a soma, a cooperação entre os homens; a subtração, a eliminação do que é desnecessário; a multiplicação, a expansão do mundo; a divisão, a solidariedade.
A falha, a briga, o desgosto, a discórdia, a impureza, os excessos, são desarmoniosos. Pensemos nos opostos: o efeito sobre a imaginação é outro.
Arthur Schopenhauer nos ensinou que “a vontade dos animais serve unicamente para expressar a vontade, em suas excitações e movimentos, mas a voz humana também serve para expressar o conhecimento.[1] (Schopenhauer, p. 145)
O Trivium, base do ensino medieval, nos ensina que a linguagem desenvolve-se a partir da natureza mesma do ser humano. Para Marguerite McGlinn:
Uma vez que somos racionais, pensamos; porque somos sociais, interagimos com outras pessoas; sendo corpóreos, usamos um meio físico. Inventamos símbolos para expressar a gama de experiências práticas, teóricas e poéticas que constroem a nossa existência. Palavras permitem-nos deixar um legado de nossa experiência para deleitar e educar aqueles que nos sucederem. Por usarmos a linguagem, engajamo-nos num diálogo com o passado e com o futuro.[2]
Por mais que o cientificismo procure tratar o homem como acidente biológico, colocando-nos ao pé de igualdade dos animais, jamais será possível para os animais atingirem o grau de desenvolvimento da natureza humana, nem mesmo nas nuances da linguagem:
Ainda que possam ser repetidos, os gritos dos animais nunca podem ser unidos de modo a formar frases; são sempre meras interjeições, e estas, mesmo na fala humana, não podem ser assimiladas na estrutura de uma mesma frase. Contudo, os seres humanos não estão limitados, tal como outros animais, a expressar seus sentimentos apenas por meio de interjeições; eles podem usar frases.
Somente os seres humanos podem proferir sons que se unem numa frase para expressar um pensamento, pois, entre os animais, apenas os humanos têm o poder de raciocinar. Consequentemente, somente eles têm uma linguagem no sentido próprio da palavra.[3]
Para Arthur Schopenhauer:
A palavra dos homens é o material mais duradouro. Se um poeta deu corpo à sua sensação passageira com as palavras mais apropriadas, aquela sensação vive através dos séculos nessas palavras e é despertada novamente em cada leitor receptivo.[4]
As palavras provocam efeitos psicológicos nas pessoas. Mencionar “chocolate” pode gerar desejo, enquanto “vinagre” a repulsa. A “infância” pode ter sido um período de muitas alegrias para uns, bem como de tristezas para outros. É possível negar que algum efeito as palavras provocam? Falar e escrever é uma forma de poder, é capacidade de influenciar e alterar estados psicológicos.
O discurso é um instrumento de prudência do qual dispõe o mensageiro, isso porque o domínio sobre a linguagem é o reconhecimento dos efeitos possíveis a partir das ideias que estão sendo impostas.
Ao escritor não é aconselhável deixar grandes lacunas no imaginário do leitor, isso por conta dos efeitos gerados a partir das experiências de cada indivíduo.
Sabemos que, do ponto de vista gramatical, quanto mais antigas as línguas, mais perfeitas elas são, e pouco a pouco ocorre uma piora […]. Essa degradação gradual é um argumento considerável contra as teorias muito apreciadas de nossos insípidos e risonhos otimistas, que defendem “o permanente progresso da humanidade para um estágio melhor” […]. Mas a experiência não ensina que, na sucessão das gerações, as línguas se aperfeiçoam do ponto de vista gramatical, e sim, como foi dito, justamente o oposto, ou seja, que elas se tornam cada vez piores e mais simples.[5]
O homem vê a si e a realidade com base em si mesmo. Por isso, é preciso conseguir enxergar a realidade numa perspectiva que não é a sua, mas vim um binóculo de imparcialidade a fim de se manter o máximo de objetividade do relato a que se propõe concretizar na forma de signos linguísticos, com a capacidade de enriquecer o universo, e não confundi-lo. A literatura ensina o ser humano a ter a capacidade de se comunicar com seres distintos, coligados pelos laços de compreensão e solidariedade.
Conhecer a literatura não é uma aventura da linguagem, mas o desbravamento das possibilidades humanas, da qual é plenamente capaz de se extrair beleza até mesmo na maldade, sendo este o papel ético do escritor. Para Aristóteles,
As palavras faladas são símbolos da experiência mental e as palavras escritas são símbolos das palavras faladas. Da mesma forma como nem todos os homens escrevem da mesma maneira, nem todos os homens possuem os mesmos sons da linguagem, porém as experiências mentais, diretamente simbolizadas pelos sons, são as mesmas para todos, da mesma forma como os objetos que são as imagens das nossas experiências.[6]
[1] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Organização, tradução, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre : L&PM, 2009, p. 145.
[2] McGLINN, Marguerite. Introdução à edição americana de 2002. In: JOSEPH, Irmã Miriam. O trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica. Tradução e adaptação de Henrique Paul Dmyterko. São Paulo: Realizações, 2011, p. 17.
[3] JOSEPH, Irmã Miriam. O trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica. Tradução e adaptação de Henrique Paul Dmyterko. São Paulo: Realizações, 2011, p. 31.
[4] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Organização, tradução, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre : L&PM, 2009, p. 145.
[5] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Organização, tradução, prefácio e notas de Pedro Süssekind. Porto Alegre : L&PM, 2009, p. 146.
[6] ARISTÓTELES. Sobre a Interpretação. In: DILTS, Robert B. A Estratégia da Genialidade. Vol. I. São Paulo: Summus Editorial, 1998, p. 87.