O Latim não é uma língua

A seguir, disponibilizo uma breve transcrição da palestra do prof. Rafael Falcón “O Latim não é uma língua”, proferida no Congresso de Educação Católica 2018.

Há aproximadamente 2 mil anos falava-se uma língua, na região conhecida como Lácio, mais ou menos onde está a cidade de Roma, conhecida como Latim, ou Língua Latina.

Atualmente há uma tendência de resgatar a língua latina para fins pedagógicos,  pelo simples motivo de que se ensinava o latim na educação tradicional, pelo menos até meados do século XX.

Há um certo consenso entre os educadores mais tradicionais de que o latim deveria voltar às grades curriculares, pelo simples motivo de que assim era ensinado antes. Então é preciso fazer o que se fazia antes.

A remoção do latim das grades curriculares faz parte de um movimento pedagógico que foi um desastre na educação brasileira. Hoje nós somos capaz de sentir os efeitos desta escolha. Mesmo que nós não saibamos o porquê ou como, o fato é que houve uma catástrofe em matéria de educação.

Dá-se a entender que ser mais tradicional em matéria da educação surte resultados melhores.

Qualquer mudança em matéria de educação só é sentida 20, 30 ou 40 anos depois. Qualquer pedagogo que faça uma revolução pedagógica não terá que responder por ela: quando os efeitos forem sentidos, ele já vai estar morto.

É saudável, portanto, se pensar que se as mudanças realizadas deram resultados ruins, o melhor é voltar a ensinar como se fazia antes.

Mas é preciso notar se o que nós entendemos por latim hoje é o mesmo o que eles entendiam por latim antes.

Por que o latim deveria estar nos nossos currículos e não outras? Por que vai aprender uma língua e não outra?

As respostas são insatisfatórias. Geralmente, os professores dizem que o latim desenvolve a inteligência. Mas e as outras, como grego, sânscrito? Não parece um motivo razoável.

Outro: latim dá acesso a cultura antiga, essencialmente Cícero, Virgílio e Horácio. Da perspectiva cristã, eles eram pagãos e não estavam livres de dilemas morais. Por que então estudaríamos isto?

Outro: é a língua da igreja. Mas os santos padres podem ser traduzidos. É também uma teoria frágil.

Os motivos, assim, são frágeis, pois o latim não estava nos nossos currículos escolares a fim de ser utilizado como uma língua.

Não é possível se pontual como um homem civilizado (letrado) num país ocidental sem conhecer os rudimentos da língua latina.

Existem 3 campos de atuação ou motivos ou zonas de influência deste estudo para se aprender latim:

  1. Linguística: não é aprender a língua em si. O que é exatamente aprender uma língua? Como é que você sabe se você domina uma língua? O sentido corrente desta palavra hoje é como um conjunto de hábitos fonológicos, responder bom dia quando alguém lhe dar bom dia. Numa escola de idiomas é assim hoje, é o que você vai estar aprendendo: aprender a repetir um conjunto de palavras num determinado contexto. É como dar um salvo-conduto para a pessoa chegar a um lugar e receber alguma coisa. Não estamos falando, neste sentido, de algo muito complicado de se aprender. No contexto de uma educação católica, qual seria a função disso? Por isso, não tem nenhuma relação com o que entendemos em ensino de idiomas nos dias atuais.

O sentido linguístico, portanto, deve ser dissociado do que entendemos atualmente. Fazer isso seria apenas uma porta de entrada para o resto.

Vis, vir, virtus à derivadas da mesma raiz. A palavra força tem alguma a ver com força e com virtude. Se você aprende uma língua da maneira comum, essas coisas vão passar despercebidas, apenas repetindo determinadas palavras em certos contextos.

Partir dessa análise, nos seus aspectos mais profundos, vai criando uma sensibilidade linguística, no qual é possível perceber que a língua é regida por princípios racionais. E quando você fala, está se valendo destes princípios para dizer aquilo que você diz. Assim, você não está mais repetindo palavras como um papagaio, mas manipulando como um técnico que manipula uma máquina com destreza.

É como a diferença entre um pianista e um passarinho: o primeiro percebe racionalmente a música, enquanto o segundo apenas sensorialmente.

O latim permite isso por dois motivos:

O primeiro deles é porque se trata de uma língua altamente estruturada.

O português não é um idioma independe, assim como o francês, o inglês e o espanhol não são. O português foi formado pelo latim, não só pela evolução histórica. O latim foi utilizado para regular, corrigir e expandir as línguas modernas conscientemente pelos grandes intelectuais e pelos grandes escritores desta língua.

Ver: https://www.publico.pt/2016/04/20/culturaipsilon/noticia/o-portugues-como-lingua-de-camoes-e-um-mito-1729480

Não há existência gramatical na nossa língua fora do latim. Nossa gramática foi conscientemente derivada e formulada a partir da gramática latina. Os nossos escritores sabiam latim e o utilizavam como regra para escrever português.

Dante afirmava que os idiomas vulgares não são racionais, com estrutura morfológica imperfeita. (ver: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8148/tde-17112009-153952/publico/COSIMO_BARTOLINI_S_V.pdf)

Idiomas modelados a partir do latim. Não foi um acidente, mas uma criação consciente. Possivelmente os idiomas voltem a se tornar bárbaros se perdemos o espelho do latim, pois eles não possuem existência gramatical independente do latim, por isso são tão dependentes da língua do Lácio.

O domínio racional dos nossos idiomas é regulado pela gramática latina, por dois motivos em especial: a) a gramática latina possui uma racionalidade superior embutida na sua estrutura; b) foi ela que deu estrutura e racionalidade aos nossos idiomas. Se isso parar de ser feito, os princípios de formação vão cair – e isto já está acontecendo. Linguisticamente, não estamos no mesmo nível de barbárie dos visigodos, mas possivelmente não muito longe – e isso nas discussões intelectuais, as pessoas não têm mais a capacidade de expressão para se manifestar nos debates. Foi por isso que nossos escritores fizeram este esforço, que se perdeu hoje.

Então, no nível linguístico você adquire um domínio racional das estruturas da língua que torna você capaz de ler e de s expressar sabendo o que você está fazendo.

Sem ser capaz de demonstrar os princípios racionais e metódicos que a interpretação do texto é esta e não aquela, você não está lendo. Para ler como um ser humano, num nível apropriado para um ser humano, é preciso ler com domínio racional da linguagem que lhe permita provar que a interpretação do texto é uma e não outra. É por isso que se instituiu o ensino da gramática, ou seja, para ensinar as pessoas a fazer esse nível de leitura. Como é que você vai ter uma discussão acadêmica em alto nível se cada um lê e interpreta um texto da sua forma, se cada um entende do seu próprio jeito?

Uma língua racional possui essa instrumentalidade, mas como as pessoas não dominam mais este conteúdo, então não é possível seguir com uma discussão.

  • Cultural: nos últimos 2 mil anos, o que mais temos de valor no ocidente foi escrito em latim, escrito por pessoas com certos pressupostos no pensamento e num certo nível intelectual.

Os medievais eram capazes de compreender os romanos antigos. Eles tinham a mesma base e eram capazes de entender como os outros pensavam. Com as mesmas experiências intelectuais, permite-se compreender o outro.

O latim, portanto, não é para se aprender “línguas clássicas”: é latim, que está muito acima do grego para fazer este exercício.

Não é apenas ler os autores antigos, mas compreendê-los. Não basta saber dar “bom dia” em latim, isso não vai resolver. É preciso entender como eles pensavam. É preciso duma disciplina intelectual que te torne capaz de entrar na cabeça desses escritores, senão não haverá comunicação.

Não basta, portanto, você descodificar a língua, saber o que cada palavra significa, mas entender as experiências que aqueles autores tinham. É preciso ter um treino intelectual que seja o mesmo treinamento daqueles autores.

  • Filosófica (ou intelectual): nesta terceira camada, não estamos mais falando em termos gramaticais, saber o que é um genitivo, um acusativo – embora aqui já seja necessário dominar este saber, a fim de dominar os princípios racionais que amparam aquela língua.

Sensibilidade gramatical evolui para uma sensibilidade filosófica da língua: libertar um senso inato para a racionalidade da linguagem humana. Isto começa a dar uma sensibilidade do que pode ser a racionalidade da língua divina. Ao completar isso, era o que os professores medievais entendiam por completar a gramática do Trivium. Para os santos padres, quando você completa este nível, é possível você ler as sagradas escrituras e entender o sentido literal daquilo que está sendo dito.

Por isso, tradicionalmente, não se estudava latim para aprender a língua latina – embora isso fosse uma atividade que as pessoas aprendiam durante o processo, mas longe de ser o objetivo principal da disciplina. O objetivo principal era se formar no nível gramatical do Trivium.

Dante, por exemplo, ora chamava de “gramática”, ora de “latinum”. Usava latim para se referir à gramática do Trivium.

Depois do final da Idade Média, o sistema das artes liberais se desmantelou, mesmo sem mudar de nome, pois os educadores foram esquecendo para qual fim servia esse estudo. Cícero e Virgílio são parte do instrumental para se chegar a outra coisa, e não a finalidade do latim. Esses humanistas já estavam desinteressados nos estudos das escrituras. No século XIX, embora o estudo estivesse mantido, já não se sabia qual era a sua finalidade: o que se faz por correto se dá muito mais por tradição do que por compreensão.

Se perguntasse para um professor para que servia aquele estudo, provavelmente desconversaria e diria: “eu não sei, mas foi como eu aprendi e eu tenho a impressão de que a minha educação se beneficiou disso. Então continuo fazendo”. O que foi destruído nos tempos atuais é, portanto, um resquício de educação que era mantido, embora sem a compreensão da sua finalidade.

Os métodos atuais se tornaram métodos para o ensino de uma língua, perdendo a função originária do latim. A pessoa começa a sentir que está aprendendo alguma coisa, e para ela basta. O ensino da gramática e etimologia fica para segundo plano, e de forma superficial.

Para adquirir domínio, todavia, é preciso disciplina, é preciso conhecer a língua como a palma da sua mão.

As discussões pedagógicas sobre os métodos de latim no século XX foram no sentido de se fazer uma revolução pedagógica, pontuando que a forma clássica de ensino era apenas para uma elite, para fazer estudos avançados: “agora, qualquer um pode aprender latim, democratizamos o latim, você não precisa ficar inteligente para aprender latim”.

Agora que o latim foi desmantelado, transformado numa língua, ele não serve para nada, a não ser para fetiche, quando as pessoas acham que estão estudando algo de valor.

Alguns comemoraram esta revolução pedagógica, como se tivessem salvado o latim, como se tivessem resgatado algum interesse no estudo do latim, que até então estava se perdendo.

Quando adquirir um livro de latim, independentemente do título, é preciso ver se ele segue o método que os nossos padres mandavam fazer. Se não utilizarmos princípios racionais, não é educação de gente, mas adestramento. De modo geral, quanto mais velho melhor. O método precisa ensinar o aluno a provar aquilo que ele está lendo, ou seja, não a usar a gramática puramente para uso, mas compreender e dominar racionalmente como teoria. Tudo o que não faz uso da inteligência não deve ter credibilidade.

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